em 16 de junho de 2020

A Inquisição e a perseguição aos sefarditas: um resumo comovente

em 16 de junho de 2020

A Inquisição e a perseguição aos sefarditas: um resumo comovente

Criada na Idade Média, no século XIII, a Inquisição era uma instituição composta por diversos tribunais dirigidos pela Igreja católica. Por meio dessa estrutura eclesiástica punia-se os indivíduos que compartilhavam ideias ou tinham comportamentos criminalizados pela Igreja. Embora ela assumisse diferentes configurações, variáveis consoante o contexto ou a região onde o tribunal estava presente; porém, independente dessas diferenças, a perseguição, o processo, o julgamento e muitas vezes a morte era o trajeto trilhado por essas pessoas que de alguma forma pareciam ameaçar a ortodoxia católica.

Ao longo dos séculos de existência da Inquisição muitas ideias e práticas hoje tidas como corriqueiras eram criminalizadas. Os cientistas, por exemplo, estavam constantemente sob julgamento dos olhares punitivos do tribunal da santa fé. Galilleu Gallilei, físico e astrônomo nascido em Florença, foi chamando à Roma pelo papa Urbano VIII, para ser julgado pela sua defesa da teoria de Nicolau Copérnico. Condenado pelo tribunal da santa fé, Gallilei foi condenado a abjurar, negar o heliocentrismo, reforçando consequentemente a teoria de que era a Terra que girava em torno do sol e não o contrário.

Muitos eram os crimes elencados e perseguidos pelo Tribunal, uns ligados as atitudes desviantes — como a bigamia, invocação do diabo nas práticas de feitiçaria, a leitura de livros proibidos pela Igreja, defesa da fornicação livre, sodomia (prática do sexo anal), etc. — e outros relativos aos transvios da fé. Os crimes contra o catolicismo açambarcavam aqueles que duvidavam do Santíssimo Sacramento, que negavam os dogmas da Igreja e do papa, que questionavam a pureza da Virgem, os seguidores da “seita de Lutero” ou de “Maomé” e, por fim, as práticas judaizantes. Esse último delito foi, sem dúvida, o mais perseguido pela Inquisição na península ibérica.

O Dia de Todos os Santos foi a data escolhida pela Igreja católica para lançar, em 1478, o documento que fundaria a Inquisição no período moderno. Em 1º de novembro a bula papal Exigit sincerae devotionis affectus fora redigida em resposta aos pedidos dos reis católicos — Isabel de Castela e Fernando de Aragão — que ansiavam por uma chancela de Roma para defender o catolicismo, sobretudo após séculos do início do processo de Reconquista da Península Ibérica da mão dos árabes muçulmanos. Ambos ansiavam por um tribunal independente da Igreja, que funcionasse com uma estrutura, um regimento e funcionários próprios, e que punisse os indivíduos que continuassem professando de fés não católicas. Era um instrumento de suma importância para a tão pretendida “limpeza de sangue”. Ressalte-se que o grande fator motivador para a criação do tribunal da Inquisição foi, sem dúvida, o judaísmo.

Enquanto a Espanha vivenciava a Inquisição e seus auto de fés — uma espécie de procissão onde as pessoas processadas desfilavam rumo ao pronunciamento público das suas sentenças — Portugal vivia um momento diferente. O nascimento do Santo Ofício português, fundado somente quatro décadas depois, é o resultado de uma longa caminhada iniciada sobretudo a partir da expulsão de sefarditas e muçulmanos do reino vizinho.

O Édito de Alhambra, publicado em 31 de Março de 1492, impulsionou a migração de milhares de judeus fugiram para Portugal para fugir não só da conversão forçada, como também dos espetáculos sangrentos promovidos contra eles pela Inquisição espanhola desde 1478. Até então no reino lusitano a convivência entre cristãos e não cristãos não havia causado tensões minimamente semelhantes às identificadas no território espanhol. Porém o aumento súbito da presença judaica no reino português e a difícil integração dos recém-chegados, somados à pressão dos reis espanhóis sobre o monarca lusitano, culminaram na expulsão de 1497.

O decreto de Dom Manuel I foi também um tiro no pé

O decreto outorgado por d. Manuel I previa não somente a expulsão do território português de muçulmanos e sefarditas, como ainda o confisco dos bens e o fechamento das mesquitas e sinagogas, proibindo a prática das duas religiões. Entretanto, apenas os primeiros conseguiram sair de Portugal. Consciente da importância dos judeus para a economia portuguesa — principalmente no financiamento das atividades ultramarinas —, a coroa portuguesa adotou medidas visando dificultar a sua evasão: restringiu a saída apenas pelo porto de Lisboa, tomou os seus filhos menores, limitou a venda de bens imóveis, dentre outros. Por fim, dezenas de milhares de judeus foram forçados a receber a água batismal e passaram a ser identificados como cristãos novos.

A ruptura definitiva entre os católicos e os recém convertidos cristãos novos deu-se quase uma década depois da conversão em massa dos judeus. O famoso episódio do massacre de Lisboa em 1506 foi impulsionado por uma reação violenta ao comentário de um cristão novo, que dentro da Igreja de São Domingos teceu um suposto comentário acerca do brilho milagroso no crucifixo, e tornou-se a gota d’água para o convívio entre cristãos velhos e novos. Durante três dias centenas de sefarditas recém convertidos foram mortos e a partir de então a tensão entre os dois grupos aumentou exponencialmente. Embora muitas vezes a coroa tenha interferido a favor dos cristãos novos, tentando dirimir as altercações e também a fuga do capital que patrocinava a expansão do império português, a verdade é que em 1536 a Inquisição chegava a Portugal com seus olhos voltados ao judaísmo e aos cristãos novos que insistiam em praticá-lo. Em nome da Igreja católica, e ao longo dos seus quase três séculos de funcionamento, a inquisição portuguesa, cuja sede em Lisboa era na casa negra do Rocio (onde está atualmente o teatro D. Maria), gerou cerca de 45 mil processos divididos entre seus diversos tribunais, perseguindo — inclusive na África, América e Ásia — milhares de mulheres e homens que ousavam ter comportamentos ou ideias diferentes.

Referências:

Elias Lipner, Santa Inquisição, terror e linguagem, Editora Documentário, 1977.
Francisco Bethencourt, História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição portuguesa: 1536-1821, Lisboa, A Esfera dos Livros (ed.), 2013.
José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da discplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-1750), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011.
Yllan de Mattos e Pollyana G. Mendonça (orgs.), Inquisição & Justiça Eclesiástica, Jundiaí, Paco Editorial, 2013.

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