Em 2015, como forma de reparação histórica, Portugal aprovou uma lei que permite a concessão da nacionalidade, por naturalização, aos descendentes de judeus sefarditas. E, em menos de dois anos, 21 mil judeus sefarditas pediram até 2018 a nacionalidade portuguesa, segundo revelou em Maio deste ano a secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes Godinho, ao acompanhar a visita de uma delegação judaica a Portugal.
A comitiva integrava líderes da comunidade judaica sefardita que vieram a Portugal para “conhecer a herança judaica” e que depois anunciaram a intenção de se tornarem “embaixadores” do país, face à aposta do governo na divulgação de Portugal junto de judeus norte-americanos.
Na ocasião, a governante portuguesa revelou que, nos primeiros quatro meses de 2019, entraram no Instituto de Registos e Notariado sete mil pedidos, que se somam aos quase 14 mil registados em 2018, denotando uma aceleração do interesse neste programa.
“Os pedidos têm crescido exponencialmente”, sublinhou Ana Mendes Godinho. “São jovens e famílias com ligações a Portugal”, sendo que desde o início do programa já entraram um total de “33 mil requerimentos e foi atribuída nacionalidade portuguesa a mais de sete mil judeus sefarditas”, acrescentou.
A governante recordou que um descendente de judeu sefardita se apresentou recentemente com a chave da casa dos seus antepassados em Castelo Vide.
No caso espanhol, o prazo para pedido de nacionalidade dos judeus sefarditas terminou em 31 de Agosto, com 132 mil pedidos. Com o aproximar da data de termino da lei verificou-se uma avalanche com mais 72 mil pedidos de última hora.
A maior parte dos pedidos de nacionalidade de descendentes de judeus sefarditas portugueses vêm do Brasil, nomeadamente do Ceará e Pernambuco, para onde fugiram milhares de judeus perseguidos pela corte portuguesa.
No final do século XV chegaram a Portugal milhares de judeus expulsos de Castela, que foram acolhidos a troco de uma taxa, mas, em 1496, surgiu um édito real de D. Manuel I com os mesmos objetivos. O monarca expulsa os não cristãos (judeus e muçulmanos) e obriga-os à conversão. Surgem milhares de cristãos-novos que serão alvo preferencial de sevícias nos anos seguintes, como aconteceu na Matança da Páscoa. Nesse tristemente celebre massacre, um frade dominicano prometeu 100 dias de indulgências a quem matasse os hereges e, durante três dias, Lisboa foi percorrida por multidões que pilharam, violaram e mataram cristãos recém-convertidos na sequência do decreto real.
O primeiro brasileiro a obter a nacionalidade
O primeiro brasileiro a conseguir obter a nacionalidade portuguesa graças a nova lei da nacionalidade foi Nertan Arruda e, na sua família, agora já não é novidade nenhuma a obtenção da nacionalidade desta forma.
“Fizemos pesquisas em Sobral, Massapê, descobrimos documentos históricos sobre os primeiros descentes dos judeus que foram expulsos da Europa e vieram para o Nordeste brasileiro. Em Lisboa, comprovaram a veracidade dos documentos, e consegui a cidadania”, relembra.
A partir do certificado de Nertan, o primo Henrique Sérgio Abreu aprofundou as investigações da genealogia sefardita no Ceará para obter o mesmo certificado para si próprio e para outros 29 familiares. Para isso, teve de comprovar a ascendência de cada uma das 15 gerações que o separam de Branca Dias, judia morta em Pernambuco em 1558.
A professora judia expulsa de Portugal
O empresário Henrique Sérgio já obteve documentos que atestam os seus laços de consanguinidade com Branca Dias no Brasil e da Comunidade Israelita de Lisboa. Os documentos, no entanto, ainda precisam de ser analisados e aprovados pelo Ministério da Justiça português, que concede a cidadania aos descendentes de judeus sefarditas.
A sefardita Branca Dias, expulsa de Portugal no século XVI, é identificada por alguns historiadores como a primeira mulher a lecionar no Brasil, mantendo escolas nos engenhos que possuía com o marido em Olinda, na antiga capitania de Pernambuco. Ela vivia na colónia portuguesa como “cristã nova”, como eram identificados os judeus convertidos.
No entanto, às escondidas, ela praticava sua religião, facto que foi descoberto e a levou à condenação pela inquisição. O julgamento inquisitorial e a relevância de Branca Dias deixaram vasto material documental sobre ela e seis gerações dos seus descendentes.
“Consegui parte dos documentos com os registos da família e em igrejas, outra parte em livros do Brasil e registos portugueses da perseguição aos judeus. Não é fácil conseguir essas provas, mas o instituto lusitano disse-me: “você tem um material maravilhoso, é preto no branco, tudo muito bem comprovado.”
O empresário afirma que a cidadania portuguesa pode trazer benefícios práticos para si e para a família, mas a descoberta de origens familiares é o que mais o motiva a realizar as pesquisas genealógicas.
“Aos 70 anos já não busco mais tanta coisa que vá modificar a minha vida, é muito mais um interesse histórico de procurar as minhas origens. Certamente que os meus filhos e netos podem ter interesse, podem estudar no exterior e viajar por diversos países da Europa possuindo eu a cidadania portuguesa e eles também.”
Para completar a documentação, contou com os serviços do genealogista Assis Arruda, que estuda há 45 anos ancestrais de famílias de Sobral e da Região Norte do Ceará. Para cada processo de estudo genealógico, Assis leva meses de intensa pesquisa.
“Quando os judeus foram expulsos e vieram para o Nordeste, eles procuraram tirar todos os vestígios que o ligassem ao judaísmo para evitar perseguições, muitas vezes mudaram de nome, o que dificulta a pesquisa genealógica. No caso de Branca Dias, a Inquisição formalizou um processo no tribunal, já com o nome de cristã nova.”
“Reparação histórica”
A “Martins Castro” possui uma equipa de advogados em Lisboa e no Brasil especializada em processos de nacionalidade pela via sefardita. O escritório de advogados integra pesquisadores e genealogistas que actuam desde os comprovativos de vínculo genealógico com judeus sefarditas, através da elaboração da pesquisa genealógica, até a instrução, protocolo e acompanhamento do processo perante as autoridades portuguesas.
Pelas mãos do sócio e advogado Renato Martins, especializado em processos de nacionalidade dos judeus sefarditas, muitos tem sido os casos com um final feliz.
Renato Martins, que falou ao Contacto sobre estes casos, considera que a lei portuguesa “foi uma forma de reparação histórica” de uma injustiça.
O advogado diz que, apesar dessa possibilidade ainda ser praticamente desconhecida no Brasil, são inúmeras as famílias com origem sefardita e que podem requerer a dupla cidadania. “O processo, em Portugal, é efectuado através de provas documentais e demora entre 12 a 18 meses.
A obtenção da cidadania portuguesa através da conexão sefardita também não é uma novidade para a família da cearense Claudiane Juaçaba. A advogada é prima do primeiro brasileiro a conseguir o feito, Nertan Ribeiro. Calcula-se que o Ceará seja um dos estados brasileiros com maior número de descendentes dessa comunidade.
Com a ajuda desta equipa jurídica, Claudiane e o marido Carlos Juaçaba conseguiram que os seus pedidos de cidadania portuguesa fossem analisados e deferidos pelo Ministério da Justiça de Portugal, o que os tornou automaticamente cidadãos portugueses. A família já tem planos para o novíssimo passaporte vermelho: “Agora queremos conseguir a cidadania dos nossos filhos, para que eles possam estudar na Europa com a facilidade de europeus”.
Com rasgados elogios aos advogados, que considerou fundamentais para esta conquista familiar, Claudiane diz que espera ansiosa a sua próxima viagem à Europa: “Agora, já como cidadã portuguesa”, antecipa.
Por uma dor de dentes
Foi uma paciente do dentista Marcos Medeiros que lhe falou pela primeira vez do decreto que concede a nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas. Medeiros descobriu que os detentores do sobrenome Medeiros eram elegíveis para requerer a cidadania portuguesa.
Curioso procurou mais informações até encontrar o escritório de advogados da “Martins Castro Consultoria Internacional” e o genealogista que reconstruiu a sua árvore genealógica até o ascendente sefardita. Hoje, mais perto de obter a cidadania portuguesa, o dentista e a família já celebram o certificado emitido pela Comunidade Israelita de Lisboa (CIL).
“Saber de onde viemos, a nossa história, traz um sentimento de acolhimento”, sublinha o dentista. A conquista da cidadania portuguesa é para muitos brasileiros o resgate das origens familiares e o caminho para novos horizontes.
O decreto real fatal
Como forma de reparação histórica, a legislação portuguesa, através da Lei nº 1/2013 e do Decreto-Lei 30-A/2015, passou a conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos descendentes de judeus sefarditas.
O Édito de Expulsão dos Judeus e dos Mouros de Portugal do Rei D. Manuel de 1496 determinava que os judeus deveriam ser convertidos ao cristianismo ou seriam condenados à forca.
Muitos judeus converteram-se ao cristianismo, mas, na prática, a maioria exercia a fé judaica às escondidas.
Milhares de judeus foram assassinados em 1506 por alegadamente serem a causa de uma seca intensa em Lisboa.
Muitos dos que escaparam ao linchamento da populaça ou à forca foram forçados ao êxodo para a Holanda ou para as colónias portuguesas, como Angola, Goa e Brasil.
Quando Portugal anunciou que daria a cidadania aos estrangeiros que provassem ter antecedentes sefarditas – uma forma de pedir desculpa ao povo banido da península Ibérica no final do século XV e no século XVI – Paula Teixeira da Cruz, que à época era a ministra da Justiça em Portugal, afirmou: “Entendo que nesta matéria não há possibilidade de reparar o que foi feito. Diria que se trata da atribuição de um direito”, disse.
Entre 2010 e 2016, das quase 100 mil concessões de cidadania portuguesa a cidadãos brasileiros, apenas 39 foram alcançadas por esse meio, de acordo com o Ministério da Justiça.
Ricos e insolentes
O Édito de Expulsão dos Judeus e dos Mouros de Portugal provocou a saída em massa da comunidade judaica do território português – cerca de 200 mil pessoas – o que representou uma razia demográfica com grandes parcelas do território deixadas ao abandono e ao empobrecimento. Na fuga, os judeus levaram não só dinheiro, metais preciosos, mercadorias, mas também poderio científico e militar.
“Os Judeus de Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que arremataram ao Rei. São insolentes com os cristãos. Têm muito medo da proscrição, pois o Rei de Espanha ordenou ao Rei de Portugal que expulsasse os marranos e da mesma forma os Judeus, aliás teria guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao de Espanha, ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos. Jerónimo Münzer in “Viagem por Espanha e Portugal. 1494-1495”
Os judeus tinham uma importância determinante em Portugal em áreas tão variadas como a ciência, a medicina, a arte, a economia ou a política e o seu êxodo forçado constituiu uma sangria em vários domínios para Portugal.
Por exemplo, o primeiro livro impresso em Portugal, o Pentateuco de 1487, é de origem hebraica, e saiu do prelo de Samuel Gacon, na cidade de Faro.
O naturalista Garcia de Orta, o médico Amato Lusitano ou o matemático Pedro Nunes são alguns dos judeus sefarditas que deram relevantes contributos para a ciência de Portugal e do mundo, mas também o filósofo Bento de Espinosa (1632-1677) que nasceu numa família de negociantes judeus portugueses que fugiu para Amesterdão.
O rabino Eli Rosenfeld, um cidadão norte-americano que vive em Portugal, considera que “Portugal deu novos mundos ao mundo com as suas descobertas e, ao expulsar os judeus, deu também mundos ao mundo. Mas ficou a perder”.
Todo o processo da expansão marítima espanhola (e dos Países Baixos) só terá sido possível porque uma série de judeus que foram expulsos a financiaram.
Actualmente, o governo português aposta no turismo de saudade dos descendentes dos sefarditas espalhados pelo mundo.
Milhares deles visitam localidades como Castelo de Vide, Belmonte ou Trancoso para conhecer o património judaico nacional. Há novas ligações aéreas entre Portugal e Israel, novas agências especializadas, hotéis, lojas com alimentos e vinhos kosher.
É descendente de judeus sefarditas portugueses?
Os descendentes de judeus sefarditas portugueses, que através da demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa, com base em requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal, designadamente apelidos, idioma familiar, descendência direta ou colateral, desde que sejam maiores ou emancipados à face da lei portuguesa e não tenham sido condenados, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos, segundo a lei portuguesa, podem solicitar a nacionalidade portuguesa.
O genealogista Assis Arruda afirma que há boas possibilidades de uma pessoa ter vínculo com judeus sefarditas caso tenha os seguintes nomes de família: Arruda, Gomes Parente, Ribeiro da Silva, Ferreira Gomes, Linhares, Ferreira da Ponte, Sabóia, Lira, Rodrigues de Lima, Furtado de Mendonça, Domingues da Silva, Machado da Ponte, Montenegro, Mont’Alverne, Demétrio, Monte, Carneiro, Araújo da Costa, Vasconcelos e famílias que se instalaram na zona Norte do Ceará.
Atualmente, estima-se que milhares de cearenses tenham direito a requerer a nacionalidade portuguesa, caso comprovem a sua origem sefardita.
Os sefarditas terão tido origem no grupo de judeus que fugiu para a península Ibérica após a ocupação da Palestina pelos romanos por volta do ano 70 d.C. A Península Ibérica era designada por Sepharad por esses exilados, o que deu origem ao nome sefardita.
Por Sérgio Ribeiro Soares