Lisboa — Nunca tantos brasileiros decidiram deixar o Brasil para viver e trabalhar no exterior. Dados consolidados pela Fragomen, a maior e mais antiga empresa de imigração do mundo, apontam que o total de pedidos de vistos de emprego e residência em outro país já supera o registrado antes da pandemia do novo coronavírus. Entre janeiro e novembro deste ano, somente com destino a Portugal, as requisições aumentaram 200% ante o mesmo período de 2021. Para os Estados Unidos, o crescimento foi de 114% e, para Austrália e Nova Zelândia, chegou a 544%. “Estamos há 10 anos no Brasil e qualquer que seja o dado analisado, é recorde”, diz Diana Quintas, CEO da Fragomen e vice-presidente da Associação Brasileira de Especialistas em Migração e Mobilidade Internacional (Abemmi).
Há, no entender de Diana, uma conjunção de fatores estimulando os brasileiros a emigrarem, o mais forte deles, a possibilidade de terem salários em euro e em dólar. “Nesse ponto, as empresas brasileiras não conseguem competir”, afirma. Outro fator é a oportunidade de internacionalização de carreira, que tem seduzido, sobretudo, os mais jovens. Contam, ainda, as condições melhores de vida, especialmente no quesito segurança, e perspectiva de educação de qualidade para os filhos. Mais recentemente, passou a pesar nas decisões de mudança para o exterior a questão política, ante a polarização que se vê no país. “Tudo acaba se somando e, quando uma boa oportunidade aparece, muitos não abrem mão”, ressalta.
Para a CEO da Fragomem, os jovens são os mais ansiosos, mas também executivos com cargos altíssimos, como de presidentes de empresas, têm se rendido a propostas para deixar o Brasil. “Os jovens têm um timing que não podem perder. Se não veem incentivos em seu país, vão para onde acreditam ter mais oportunidades”, frisa, coberta de razão. O índice de desemprego entre esse público encosta em 20%, mais que o dobro da média nacional, de 8,3%. Quando se olha apenas para a população mais vulnerável, que vive na pobreza, três em cada 10 têm entre 15 e 29 anos. É um desperdício de talentos enorme e um comprometimento do futuro.
“Estamos perdendo os nossos jovens mais qualificados para o exterior. O resultado disso é que ficamos com uma deficiência ainda maior de mão de obra, especialmente em setores estratégicos, como o de tecnologia da informação (TI). Ou seja, o pouco que temos aqui é atraído por outros países”, ressalta Diana. Para ela, uma forma de compensar parte desse êxodo, além da melhora da educação e da retomada consistente do crescimento econômico, é o Brasil atrair de volta os brasileiros que estão no exterior e estimular que estrangeiros venham para o país trabalhar e para capacitar a mão de obra local. Isso requer, na visão dela, um manejo melhor de política de imigração e, claro, melhores condições de vida aqui.
Ciência e matemática
Pelos registros da Fragomen, a maior demanda por profissionais brasileiros no exterior se dá nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática. “Há demanda no mundo todo por trabalhadores desses segmentos”, reforça, com base no relatório de tendências migratórias elaborado pela empresa. Ela acredita, porém, que o Brasil acaba ficando em desvantagem perante a concorrência por causa das dificuldades em capacitar a mão de obra que tem disponível. “Com certeza, o Brasil é capaz de formar e capacitar excelentes cientistas, engenheiros, matemáticos, especialistas em tecnologia da informação. Mas não o faz. Assim, quando esses profissionais não encontram no país de origem um ambiente que os acolham, fogem para outras nações com projetos e investimentos nas áreas em que atuam”, explica. “Podemos dizer que estamos vendo uma fuga de cérebros do Brasil”, enfatiza.
Os números de posse da Fragomen impressionam. A CEO da empresa conta que há, atualmente, mais de 3 milhões de brasileiros vivendo, de forma regular, no exterior — boa parte deles trabalhando. Um recorde. “Isso representa três vezes o total de estrangeiros com registro formal no Brasil”, acrescenta. Essas informações, ressalte-se, não incluem aqueles que estão em situação irregular. A maior parcela de brasileiros que deixaram o país formalmente está nos Estados Unidos. Entre 2010 e 2019, essa população aumentou quase 50%, de 340 mil para 502 mil. Hoje, já encosta nos 600 mil. Em Portugal, são quase 300 mil brasileiros, um terço de todos os estrangeiros que vivem em território luso.
Um deles é Daniel Cupertino, 39 anos, que atua na área de tecnologia da informação da francesa Airbus. Ele mora em Almada, região metropolitana da Lisboa. A fabricante de aviões abriu três unidades em Portugal, uma para peças, duas para abrigar profissionais de todas as áreas. Daniel chegou ao país europeu no início de 2021, no auge da pandemia do novo coronavírus, sem qualquer vínculo empregatício. Tinha apenas um contrato de mais dois meses com a Nissan, para fazer a transição do trabalho a seu sucessor. Ele estava convencido de que valeria a pena abrir mão de um emprego certo no Brasil para tentar a sorte no exterior.
Tudo conspirou a favor de Daniel. O marido dele, Fernando, havia sido selecionado para um doutorado em uma universidade em Lisboa. Assim, mesmo sem trabalho, ele poderia ficar em Portugal para se colocar no mercado de trabalho. Antes mesmo de seu contrato com a Nissan expirar, ele já havia sido selecionado por uma empresa de tecnologia local. “É muito alta a empregabilidade no setor em que atuo”, afirma. Dali para a Airbus foi um pulo. “Fiz a escolha certa. Antes de me mudar para Portugal, dizia que, se nada acontecesse do ponto de vista profissional, já seria um ganho pela experiência de viver fora do Brasil. Mas tudo aconteceu.”
Competição global
Na avaliação da presidente da Fragomen, não resta dúvida: “Os brasileiros estão competindo com talentos globais por vagas em multinacionais. Poderíamos estar tirando proveito desses cérebros, que estão sendo usados em prol de outros países”. Que o diga Renata Lima de Barros, 45, moradora de Portugal há três anos. Ela, que trabalha para a empresa de tecnologia Everedge, acaba de ser selecionada pela montadora alemã Volkswagen. Começará a nova empreitada em janeiro próximo. A brasileira se diz pronta para o desafio.
Renata lembra que começou a pensar em trabalhar no exterior em 2018. A questão política a estava incomodando demais. E o pior que ela esperava ocorreu: Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República. Ainda naquele ano, recebeu uma proposta para trabalhar em Lisboa com TI. “Fiz o processo seletivo, fui aprovada. A empresa me deu todo o suporte para tirar o visto de profissional altamente qualificada, com emprego. Embarquei em novembro de 2019”, rememora. Seis meses depois de instalada em Lisboa, ela comprou um apartamento. “Dentro de dois anos, poderei tirar minha cidadania portuguesa e terei toda a União Europeia de oportunidades, já que poderei circular livremente pelo mercado comum”, ressalta.
Kauê Magno, 29, acredita que se encontrou em Portugal, tanto profissionalmente, quanto pessoalmente. Ele trabalha na área de design e não via boas oportunidades em São Paulo, onde morava. “Era um lugar hostil para mim, no qual não me enquadrava, assim como também não me enquadrava em Santos, onde nasci”, afirma. “Não via em São Paulo uma oportunidade para o que gosto, o design”, acrescenta. O jovem não se arrepende da mudança. “Minha saída do Brasil para o exterior se dá pela possibilidade de ganho na qualidade de vida, no reforço de segurança e, ao mesmo tempo, para superar uma barreira que está muito distante, o tão falado exterior, a tão falada Europa. Coisa que a gente idealiza muito no Brasil e que só consegue entender melhor quando está por aqui”, assinala.
Funcionário da User Interface, Kauê diz não ter nenhum arrependimento por ter deixado o Brasil para trás. “Acho que fui muito privilegiado nessa transição. Tenho família em Portugal, o conforto da língua. Fui muito bem recebido pelos portugueses e pelos amigos que construí aqui. Isso é muito importante para o meu crescimento pessoal, assim como o meu laço com o Brasil se fortalece e compreendo a dimensão que o país tem na minha vida”, destaca. E emenda: “Em Portugal, foram muitas conquistas, oportunidades de melhora profissional, financeira e estrutural. Pude ter conquistas que não teria no Brasil, como casa e carro, família comigo, poder fazer viagens. Um avanço significativo na qualidade de vida”.
Dicas importantes
A mudança de Túlio César Rossetti Júnior, 32, para a Europa se deu por conta de um mestrado em direito administrativo, na Universidade de Lisboa. “De início, estava muito contente por mudar para o exterior, não só por conta da segurança — os índices de violência são baixíssimos —, e pelo maior poder de compra, mas, também, de conhecer novas coisas”, ressalta. No decorrer do caminho, porém, ele notou que o mercado de direito, no qual ele atuava, não era o qu e esperava. Foi então que decidiu ir para a área de tecnologia da informação, muito aquecida. “A partir daí, dei novo rumo à minha carreira”, sentencia.
Túlio reconhece que deu os passos certos, não apenas quando saiu do Brasil, mas por ter se requalificado para um mundo novo profissionalmente. “Digo que, hoje, tenho o que sempre esperei de uma vida no exterior. Quando se muda de um país para outro, gosto de pensar que a gente nasce novamente, pois temos que aprender muita coisa. É o preço que se paga, mas faz sentido e é válido”, enfatiza ele, que ainda tem a vantagem de ter a mãe por perto. Ela já havia se mudado bem antes para Portugal.
Apesar de tantos casos de sucesso e da demanda por bons profissionais brasileiros, a CEO da Fragomen alerta que trocar de país não é uma panaceia. Requer muitos cuidados. Primeiro, é preciso estar com toda a situação documental regularizada, o que abre portas. “Se chegar de maneira irregular, com certeza, a experiência de morar em outro país estará fadada a ser frustrada”, diz. Ela ressalta que vários países, por conta do rápido envelhecimento da população e da escassez de mão de obra, têm facilitado a concessão de vistos de trabalho. “Portanto, está muito mais democrático, existe um visto para chamar de seu”, avisa.
Dentro desse contexto, a executiva aconselha, por exemplo, aos profissionais de TI que priorizarem nações que criaram os tech visas. Lembra que Portugal abriu a possibilidade de as pessoas ficarem até 180 dias em seu território procurando emprego, desde que tenham como se sustentar nesse período. A Alemanha, com o que chamam de green card alemão, também está dando essa liberdade, mas os interessados devem dominar a língua local. Há, ainda, vistos para empresários, empreendedores e investidores no mercado imobiliário. “Portanto, são várias as opções, mas tudo deve ser feito com segurança”, reforça.
Outro ponto importante: o domínio da língua do país para o qual está se mudando. Isso evita que trabalhadores caíam em armadilhas na hora de assinar os contratos de empregos. “Muitas vezes, quando não há compreensão da língua, é difícil entender os contratos de trabalho, e o risco de se ficar em situação vulnerável existe”, explica. Mais: é preciso ter uma poupança para se sustentar. “Planejamento financeiro é fundamental, pois dá segurança até tudo se enquadrar dentro do que foi pensado”, recomenda.
Texto: Vicente Nunes, correspondente na Europa
Estrangeiros ocupam espaço no Brasil
Lisboa — Se o número de brasileiros dispostos a viver e a trabalhar no exterior não para de crescer, também é recorde o registro de estrangeiros que decidiram trabalhar no Brasil. Segundo a Fragomen, empresa especializada em migração e mobilidade internacional, as autorizações para trabalhadores vindo de fora concedidas pelo governo aumentaram 81% entre janeiro e novembro deste ano, quando comparadas a igual período de 2021. “Há um fluxo importante de trabalhadores estrangeiros para o Brasil. Em 10 anos de atuação no país, nunca vimos tanta demanda”, diz a CEO da companhia, Diana Quintas.
Pelos dados consolidados da Fragomen, apenas nos primeiros seis meses de 2022, mais de 10 mil trabalhadores estrangeiros entraram no Brasil, sendo que 25% dos vistos foram dados para tripulantes de embarcações que atendem a indústria de óleo e gás. Esse número, ressalta Diana, não inclui os técnicos que também trabalham no setor. “No Brasil, o segmento de óleo e gás é o segundo que mais emite vistos de trabalho temporário para estrangeiros atuarem no país, atrás somente de técnicos em geral”, afirma. “Estamos falando de uma indústria que possui um alto grau de cooperação técnica entre países e, por isso, conta com grande volume de mobilidade global de profissionais”, acrescenta.
Apesar de fluxo crescente de mão de obra estrangeira para o Brasil, a presidente da Fragomen lembra que o total de trabalhadores vindos de fora ainda representa muito pouco do mercado como um todo. “Não deveria ser assim, muito pelo contrário. A mão de obra estrangeira especializada agrega conhecimento ao país e capacita muita gente. Não por acaso, vários países estimulam a imigração desses trabalhadores”, ressalta a executiva. No total, apontam os levantamentos do Ministério da Justiça, há pouco mais de 1 milhão de estrangeiros morando regularmente no Brasil, aí incluídos os refugiados. Representam apenas 0,47% da população atual do país. O auge dos estrangeiros vivendo em território brasileiro se deu no início dos anos de 1900 — chegaram a ser quase 7% da população.
Demanda diversificada
Para Renato Martins, CEO da Martins Castro, com sede em Lisboa, quanto maior for a participação de trabalhadores estrangeiros num país, mais dinâmica e inovadora é a economia. “Vivemos um processo de mundialização da mão de obra. As pessoas deixaram de se identificar com a nação em que nasceram. Além disso, há um movimento de desmaterialização, com um telefone ou um computador pode-se trabalhar de qualquer parte do mundo”, afirma. No entender dele, nem mais a língua funciona como barreira, como 10 anos atrás. “Há cursos e aplicativos que permitem um aprendizado rápido”, ressalta.
Ele lembra, ainda, que há demanda mundial por todo tipo de mão de obra. Nos Estados Unidos, a procura é por profissionais de tecnologia da informação (TI). No Reino Unido, onde está o maior contratante mundial, o sistema público de saúde, médicos e enfermeiros são muito bem-vindos. Portugal está ávido por trabalhadores da área de serviços, especialmente para o turismo, com forte participação na economia local. No Oriente Médio, precisa-se de tudo. A Austrália, por sua vez, procura profissionais braçais, sobretudo para a construção civil. “O Brasil, portanto, não tem como ficar de fora dessa rede”, acredita.
CEO da Humanare e especialista em desenvolvimento humano e organizacional, Adriana Schneider acredita que o movimento de internacionalização de mão de obra é irreversível. “Isso vale tanto para os brasileiros que estão se aventurando mundo afora, quanto para os estrangeiros que buscam oportunidades no Brasil”, diz. Ela reconhece, contudo, que os profissionais mais qualificados acabam se sobressaindo dentro desse processo. “Nesses casos, os movimentos migratórios são mais tranquilos”, acredita. Esse grupo inclui, inclusive, os nômades digitais, que vêm sendo disputados por muitos países. Pelo menos 30 deles, incluindo o Brasil, dispõem de legislação específica com incentivos para atrai-los.
Falhas na legislação
Na opinião de Diana Quintas, da Frogomen, o Brasil se preparou para entrar nesse mundo de disputa por trabalhadores qualificados por meio da nova Lei de Imigração, editada em 2017. Porém, destaca ela, é preciso avançar na normatização de pontos específicos a fim de tornar mais atraente a vinda de estrangeiros para o país. “O Brasil, inteligentemente, pensou nessa abertura com a nova Lei de Imigração. O problema é que, passados cinco anos depois de sua sanção e regulamentação, não há um normativo, não há um artigo ou parágrafo criando uma facilitação para mão de obra especializada. Não conseguimos definir nenhuma necessidade até o momento, enquanto o mundo faz isso”, assinala.
Para ela, que é vice-presidente da Associação Brasileira de Especialistas em Imigração (Abemmi), é importante que o governo amplie as alternativas e fale para o mercado qual é a carência atual, que especialistas o país precisa. “Nesses casos, dispensa-se a reserva de mercado. Pode-se seguir, também, o modelo adotado por Portugal: as pessoas vem para o país por um determinado período, procuram trabalho e, depois, regulamentam a permanência. Essa abertura ainda não foi normatizada”, explica. Ela acredita que é possível avançar em vários pontos por meio do Conselho Nacional de Imigração, que se reúne a cada dois meses.
Tanto Diana quanto Renato e Adriana creem que o Brasil perde ao se manter tão fechado para o ingresso de mão de obra estrangeira qualificada. Há vários estudos que demonstram que os países com taxas mais elevadas de imigração têm a economia mais aquecida. “É um ciclo virtuoso. As pessoas querem emigrar para países com economias mais aquecidas. Na medida que migram, a atividade produtiva se reforça, atrai mais investimentos”, frisa a CEO da Fragomen. “Há países que, se limitassem a entrada de trabalhadores estrangeiros, o Produto Interno Bruto (PIB) seria 10% menor”, emenda.
Desemprego
Um dos argumentos usados por aqueles que veem com ressalva a entrada de trabalhadores estrangeiros no país é a elevada taxa de desemprego — mais de 9 milhões de brasileiros estão sem emprego. Para os especialistas, a taxa de desocupação não é afetada pelos imigrantes especializados. “Não vemos esse impacto”, frisa Diana. “Quando se busca mão de obra especializada no exterior é porque se precisa desenvolver habilidades que, geralmente, os locais não têm”, completa. Há ainda, formas de blindar os trabalhadores nacionais, definindo, por exemplo, um prazo para que os trabalhadores estrangeiros permaneçam no país.